Nasci e cresci numa pequena cidade do interior do Tocantins, em uma casa simples, onde não havia livros. Mas descobri desde cedo que havia mundos inteiros à minha espera nas estantes da biblioteca pública municipal e da biblioteca da escola. Foi entre esses corredores que aprendi a sonhar e a enxergar para além da minha realidade.
A despeito de todas as dificuldades inerentes à minha origem, me tornei a primeira pessoa da família a ingressar na universidade, levando comigo o orgulho e a força dos que vieram antes de mim. Em especial, as mulheres da minha família, minha mãe e minhas avós, que foram exemplos de resistência e dignidade. Também meu pai, que não teve a oportunidade de estudar, mas migrou com a família do campo para a cidade para que eu pudesse frequentar a escola. Mesmo sem terem tido acesso à educação formal, eles pavimentaram, com suor e afeto, o caminho que me trouxe até aqui.
Eu, que sonhava em ser jornalista, fui escolhida pela Biblioteconomia. Por obra do destino ou capricho do universo, acabei retornando às bibliotecas, então como profissional. Esse encontro cheio de sintonia entre a minha história de vida, meus valores e a formação humanista que recebi na faculdade, moldou a bibliotecária que sou hoje, alguém que acredita e defende o poder transformador das bibliotecas porque o vivenciou.
Como uma pessoa que coleciona sonhos realizados, em janeiro de 2014, tomei posse como servidora do Tribunal de Justiça de Alagoas, a primeira bibliotecária concursada até então. Foi uma alegria imensa, acompanhada de um desafio ainda maior. Havia, ao mesmo tempo, o peso da responsabilidade e a solidão de ocupar um espaço novo, ainda pouco compreendido dentro da instituição. Foram tempos de dúvidas, de ter que justificar constantemente a importância da biblioteca. Enfrentei resistências e limitações que me provocaram sentimentos de inadequação e não pertencimento, até compreender que o meu trabalho falaria por si.
Olhando em retrospectiva, quase doze anos depois, vejo que cada esforço valeu a pena. Consegui abrir caminhos que, espero, se tornem cada vez mais largos para os que virão depois de mim. Hoje, a Biblioteca é reconhecida na Esmal e em todo o Judiciário alagoano não apenas como um lugar de estudo, pesquisa e leitura, mas como um espaço de inovação, de construção e troca de conhecimentos, de atendimento de excelência, de promoção de discussões sobre temas relevantes e de encontros significativos.
Neste percurso, considero um dos pontos de virada a criação do Clube do Livro Direito e Literatura, projeto pioneiro em tribunais, registrado no Banco de Boas Práticas do Poder Judiciário de Alagoas. O grupo, unido pelo gosto pela literatura e pelas boas conversas, fortaleceu e formou uma comunidade em torno da Biblioteca, impactando diretamente no desenvolvimento do acervo, dos serviços e de novos projetos. O acervo passou a incluir também obras literárias; foi criado o serviço de delivery de livros, ampliando o acesso ao empréstimo; e o Projeto Justiça que Lê expandiu o escopo do Clube, promovendo cursos sobre direito e literatura, saraus e rodas de leitura.
O Judiciário é, antes de tudo, feito de pessoas. E acredito que, quando nos propomos a ir além da informação jurídica, cultivando a sensibilidade por meio da literatura, contribuímos para a construção de um Poder Judiciário mais humano, mais atento às histórias de vida que chegam até nós. Vejo a literatura não apenas como recurso cultural, mas como uma ferramenta de transformação social, que nos dá palavras para nomear sonhos, denunciar injustiças e fortalecer esperanças. Como defende o mestre Antônio Cândido, a literatura é um bem indispensável ao nosso desenvolvimento enquanto seres humanos.
Neste árduo caminho de trabalho por uma mudança de cultura, o que também me fortaleceu foi olhar ao redor e perceber quantos colegas, especialmente mulheres, atuam diariamente no Judiciário, em diferentes funções, fazendo a diferença com seu trabalho ético e comprometido. Destaco aqui as pessoas com quem tenho o prazer de trabalhar e aprender na Esmal, na Coordenadoria de Direitos Humanos e na Comissão de Equidade Racial, espaços que ocupo com orgulho e senso de responsabilidade. O trabalho de cada uma dessas pessoas reforça em mim a convicção de que podemos sonhar com um Poder Judiciário cada vez mais sensível às múltiplas vozes da sociedade.
Agradeço ao Grupo de Participação Feminina no Poder Judiciário de Alagoas pelo espaço e pelo reconhecimento, que compartilho com as mulheres da minha família, que me ensinaram a resistir, com as bibliotecas que me acolheram e me formaram, com os colegas com quem compartilho o meu trabalho e com minhas companheiras e companheiros do Clube do Livro Direito e Literatura que acreditam, assim como eu, na força das palavras.
Mirian Alves
É bibliotecária e mestra em Ciência da Informação.
Analista Judiciária Especializada – Biblioteconomia do
Tribunal de Justiça de Alagoas desde janeiro de 2014.
Atualmente é Diretora da Biblioteca do Poder Judiciário de Alagoas.